Acho que não é um exagero se disser que a tragédia do Meco marcou um bocadinho o Natal de todos os portugueses. Só uma alma muito desligada conseguiu ficar indiferente ao que se passou. Nos dias em que os corpos estavam desaparecidos pensava muito naqueles miúdos. Onde estariam, como estariam. Mas pensava ainda mais nos pais, na provação que estariam a passar, em como seriam aqueles dias de espera insuportável, com um desfecho mais do que previsível. Olhar para o mar, saber que um filho nosso está lá, não poder fazer nada a não ser esperar que o mar se decidisse a devolvê-los. Não tenho grande influência junto de Deus, mas dei por mim a pedir por eles. Ontem à noite fiquei presa a uma reportagem da CMTV sobre o acidente e ouvi alguns dos pais falarem pela primeira vez sobre o que aconteceu. Foi de partir o coração. Alguns dos miúdos eram filhos únicos e, por isso mesmo, alguns daqueles pais perderam o sentido de viver. É absolutamente triste e devastador ouvir um pai perguntar “agora vou viver para quê? Para quem?”. Ouvi-lo dizer que agora “os dias dividem-se entre menos maus, maus e horríveis”. Ou ouvir uma mãe dizer que sempre que a noite cai fica mergulhada numa tristeza profunda, porque era a essa hora que ligava à filha, todos os dias. O Mateus estava a dormir ao meu colo e eu só conseguia apertá-lo e apertá-lo mais. Não há nada que possa restituir a calma e a alegria à vida destes pais, mas o facto de não saberem ao certo o que se passou naquela noite não os deixa começar o luto devido. Há tantas dúvidas, tantas coisas mal explicadas. O que é que os filhos faziam na praia àquela hora? Porque é que deixaram os telemóveis em casa? Porque é que o dux era o único com telemóvel e como é que o mesmo não se molhou? Porque é que ele foi a casa arrumar as coisas todas dos colegas? Porque é que não fala? Porque é que os pais dele não falam? A única coisa que se sabe é que aquele encontro era uma espécie de retiro da comissão de praxes, para testarem e preparem praxes para aplicar aos alunos mais novos. A minha opinião sobre as praxes não é nova: acho uma anormalidade. Acho que não fazem sentido nenhum, em formato nenhum. Não faltarão defensores a dizer que é uma tradição linda, que se fazem amigos para a vida, que as pessoas ficam mais desenvoltas e trá lá lá, que eu acho que há outras maneiras de fazer amigos e ter uma vida social mais rica. Na reportagem ouvi duas miúdas da Lusófona, amigas de uma das vítimas, e que também andam metidas nestas coisas das praxes. Fiquei aterrorizada, parecia que estava a ouvir membros de uma seita. Dizia uma delas que as praxes preparam as pessoas para a vida, para o mercado de trabalho, que as ensinam a respeitar hierarquias. Questionada sobre o tipo de coisas que se fazem nestes retiros, respondeu que não tinham nada de mal, tudo perfeitamente inofensivo e nada perigoso. E deu um exemplo: “faziam-nos rastejar para ir buscar um copo de água. Era uma coisa simbólica, aquele copo representava o nosso curso e nós temos de fazer tudo pelo nosso curso”. Ora bem, uma miúda que acha perfeitamente normal rastejar por um copo de água porque alguém a manda, que acha que isso a prepara para a vida, diz muito sobre a lavagem cerebral que estes jovens devem levar. Já um dos pais disse que no ano passado, também num destes retiros, os miúdos foram largados no meio da serra da Arrábida, à noite, e agora desenrasquem-se. Uma vez mais, sem telemóveis. Achava que os escuteiros é que faziam coisas destas. Ou os militares. Estudantes universitários, no âmbito de praxes, é uma novidade. Depois temos a questão do respeito pelo dux. A hierarquia. O expoente máximo das praxes. O mesmo dux que agora se remete ao silêncio. Que não apareceu no funeral de nenhum dos amigos. Nem se fez representar (tudo coisas ditas pelos pais das vítimas, não sou eu que estou a inventar). A única pessoa que poderia esclarecer o que realmente se passou e que não o faz. Acredito que esteja a sofrer. Acredito que esteja traumatizado por ter perdido os amigos daquela forma. Mas os pais perderam os filhos e isso é incomparável a qualquer outra dor. Não gosto de especulações, menos ainda de teorias da conspiração, mas é mais do que óbvio que alguma coisa estranha se passou naquela noite. Que se saiba, que falem, que quebrem a merda dos pactos de silêncio (isto não é um filme do Harry Potter, é a realidade) e que sejam homenzinhos. Os tais homens que dizem ser preparados pelas praxes.
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