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Parem a internet que eu quero sair

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Um dos maiores flagelos dos tempos modernos é, ao mesmo tempo, um dos maiores privilégios que nos foram concedidos: o livre acesso à informação. Todos concordaremos que as vantagens da internet são inúmeras e uma delas é, sem dúvida, o facto de termos informação gratuita à nossa disposição, todos o dias, e de isso ter amplificado o debate sobre uma data de temas (alguns mais pertinentes do que outros, mas enfim). Neste novo mundo, toda a gente tem uma voz e, quando feito um uso ponderado e racional dessa mesma voz, isso só pode trazer benefícios e uma discussão a nível global. 

Mas depois começam os problemas.
É que nem toda a gente tem o tal "uso ponderado e racional". Muita gente acha que, por ter uma voz, tem de usá-la sistematicamente, mesmo que não tenha nada de útil a acrescentar, mesmo que seja para contribuir com um comentário parvo, despropositado, agressivo, violento, preconceituoso, etc, etc e etc. As caixas de comentários abertas (ou seja, as que não recorrem a qualquer tipo de moderação) davam um belíssimo estudo sociológico.

Tendo um blog há tantos anos, sei bem do que a casa gasta, sei bem do que as pessoas são capazes, sei bem como se transformam na internet (porque, na vida real, desconfio que são bem mais mansas). Ao fim de vários anos sem moderação de comentários, fui obrigada a instalá-la, porque percebi, rapidamente, que o conceito "liberdade de expressão" se confunde, muito facilmente, com o conceito "má criação". As pessoas acham que por lhes ser dada a oportunidade de se exprimirem, o podem fazer das formas mais atrozes. E não podem. Ou não devem, vá.

Num mundo ideal, o acesso à internet seria alvo de um detalhado processo de triagem, toda a gente teria de ser sujeito a testes para se saber se está apto ou não a navegar por este maravilhoso mundo cibernético. Isto pode parecer uma medida extrema, eventualmente até discriminatória mas, meus amigos, há pessoas que não deviam andar à solta na net. É como passar-lhes uma arma para a mão, são um perigo em potência. 

Refiro-me, sobretudo, às pessoas que apanham tudo pela rama, que lêem um título e não querem saber mais, que tiram conclusões precipitadas, que propagam notícias sem sequer saberem se são verdade, que assumem um boato como uma verdade irrefutável e que, pior, dão palpites completamente ao lado. À conta do fenómeno do clickbait (sobre o qual falei, há dias, neste texto), os jornais e revistas criam títulos completamente sensacionalistas e que em nada correspondem à verdade mas, para muita malta, isso chega. Se o Correio da Manhã diz que a Cristina Ferreira fez umas férias milionárias, deixa-me cá deixar já um comentário a dizer "ahhhh, sua ranhosa, uns com tanto, outros com tão pouco, tu a apanhares sol e outros que nem têm o que comer". Depois abre-se a notícia e, vai-se a ver, a Cristina Ferreira está em Porto de Galinhas e as "férias milionárias" são num hotel onde a diária são 120€. Cara para muitos, certo, mas longe de serem umas "férias milionárias".

Nisto da internet já há muito que aprendi que nem tudo o que parece é. E que se nos cedem informação, temos a obrigação de lhe dar uso. Não podemos ser preguiçosos, emprenhar pelos ouvidos ou deixarmo-nos levar pela corrente. Sempre que há uma nova polémica no Facebook, não dou nenhum palpite sem ir saber, primeiro, o que se passou. Quem é que disse o quê, em que contexto, porque é muito fácil pegar em meia dúzia de palavras e dar-lhes toda uma nova dimensão (geralmente pior e mais polémica do que a original). E nem sempre comento, sobretudo se acho que não tenho nada a acrescentar, se não vou dizer nada de particularmente original ou se for só para o achincalhamento gratuito. 

Abrir as caixas de comentários dos jornais e revistas é um dos meus "guilty pleasures" mais obscuros, mas acho que são um bom barómetro daquilo que as pessoas pensam e sentem. E é absolutamente assustadora a forma desresponsabilizada como as pessoas comentam. A menos que sejam perfis falsos, a maioria das pessoas comenta com o seu nome, com a sua foto, em três segundos é possível descobrir uma data de informações sobre as suas vidas, mas nem isso as demove de serem verdadeiros trogloditas. Eu juro que morria de vergonha se um chefe meu, a minha mãe ou algum amigo me vissem a fazer comentários do género dos que algumas pessoas fazem. Morria! No Facebook do blog já recebi comentários tão atrozes, tão violentos, tão horríveis, que tivesse eu mais paciência para me mexer e, provavelmente, quem os fez iria ter alguns problemas. Alguns deles estão devidamente guardados numa pastinha, nunca se sabe.

Claro que aos jornais e às revistas lhes interessa ter o máximo possível de interacções com as suas publicações, mas não podem demitir-se da sua função de mediadores. São meios de comunicação, não podem ser meios para fomentar ódios. Há uns tempos fui a um programa de televisão e o canal em questão usou trechos da minha participação para publicar no seu Facebook. Claro que pegou em frases potencialmente polémicas, as tirou do contexto e as usou como título. E claro que, na sequência disso, pessoas que nem sequer se deram ao trabalho de perceber do que é que eu estava a falar, deixaram comentários do mais baixo nível que possam imaginar. Era um programa sobre futebol, a maioria dos comentários foram deixados por homens, portanto estão a imaginar. Eram coisas hediondas. Passei-me, claro. Disse a uma pessoa ligada ao programa que era inadmissível que convidassem uma pessoa, que essa pessoa se predispusesse a participar (apenas a título de boa vontade) e que depois não a protegessem minimamente, que permitissem que fosse tratada assim nas suas redes sociais. Parece-me um cuidado básico. Lá pediram muitas desculpas, lá foram a correr apagar os comentários ordinários, mas só porque eu pedi. Porque, caso contrário, lá ficariam os comentários finíssimos, à mercê de quem os quisesse ler. E este é um dos grandes problemas, as publicações não fazem este trabalho, não moderam comentários, interessa-lhes a quantidade mais do que a qualidade, e depois dá nisto.

No meio disto tudo, houve uma notícia que me deixou ligeiramente esperançosa. Há um jornal online norueguês que só permite que as pessoas comentem as suas notícias depois de, efectivamente, as lerem. Tem de lê-las, responder a algumas perguntas sobre as mesmas, e só depois, se assim o entenderem, podem comentar. Isto faz com que as pessoas não reajam impulsivamente, que sejam mais ponderadas e que só contribuam para a discussão depois de estarem verdadeiramente informadas, ou seja, sem se ficarem só pelo título. Este método ainda está em fase experimental, ainda não se aplica a todas as notícias, mas já me parece um passo gigantesco na promoção de um debate mais consciente na internet. 


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