Há uns tempos tirou-se do ar um programa que metia uma nanny a tentar educar criancinhas que, aparentemente, falharam o módulo de "introdução aos bons modos e à convivência civilizada". Que era uma afronta expor assim as crianças, que estávamos a estigmatizá-las, que estávamos a criar futuros marginais, etc e coiso e tal. Entendo a parte da exposição dos miúdos. São miúdos, não têm propriamente voto na matéria, nem discernimento, nem capacidade para aferir o que a aparição num programa destes pode (ou não) suscitar. E, por isso, percebo que o programa tenha sido cancelado, apesar de achar que havia ali um lado pedagógico que podia ser útil a outros pais e cuidadores.
Mas ontem a televisão portuguesa decidiu brindar-nos não com um, mas com dois programas que expõem as mulheres como
se estivessem numa feira de gado, prontas a serem arrematadas por homens que mais não são do que trolls da idade média. Há meia dúzia de dias celebrou-se o Dia da Mulher e voltaram à mesa os temas de sempre. Voltou a bater-se nas mesmas teclas, incluindo a da objectificação da mulher e do quão imperativo é que não nos reduzam às nossas características físicas. Conversa para boi dormir, pelo menos para a SIC e para a TVI, que acharam óptima ideia apostar em dois programas que assentam precisamente nesse pressuposto. Comovente.Quem me segue há uma vida sabe que eu gosto do meu lixinho televisivo. Bem, na verdade, cada vez menos, porque os formatos mais recentes andam todos muito à volta disto, da procura do "amor" (ah ah ah), mas sempre fui menina para papar um bom reality show do princípio ao fim. Posto isto, não estou aqui agora a tentar juntar-me às elites intelectuais que só consomem RTP2. Mas porra, até para mim há limites. E se eu achava que o meu limite era o Love on Top - que, basicamente, é uma concentração de músculos, mamas e nenhum cérebro - o "Quem quer namorar com o agricultor?" (SIC) e o "Quem quer casar com o meu filho?" (TVI) dão assim aquela vergonha que nos faz sair de fininho e pensar "eu vou fingir que nem vi isto".
Mas eu vi, a verdade é que vi, muitas vezes andando para trás para confirmar se tinha mesmo ouvido bem. Fui saltitando entre os dois, assim numa espécie de competição a ver qual conseguia bater mais no fundo. Parabéns, conquistaram ambos o primeiro lugar. O "Quem quer namorar com o agricultor?" arranja mulheres que estão ali a esgrimir argumentos (vulgo, "mostrar pernas e mamas") para conquistarem o coração de um agricultor. E acho óptimo, que se há homens por quem vale a pena uma pessoa sujeitar-se a este embaraço nacional, são estes. E a eles, claro, a única coisa que os move é o amor. Os comentários redutores e que assentam exclusivamente na aparência das candidatas é um detalhe irrelevante, porque eles estão ali apenas para encontrar uma mulher com as características necessárias para construírem uma relação. Não sei muito bem de onde é que vem o meu espanto, está bom de ver que homens com o cérebro do tamanho de um amendoim não vão propriamente em busca de alguém com quem possam ir apreciar obras ao Museu de Arte Antiga.
Depois temos o "Quem quer casar com o meu filho?", em que mães de marmanjos ajudam os seus meninos a encontrar uma esposa. E este aqui eu acho que ainda é pior. Porque homens feitos decidirem candidatar-te a um programa para conhecerem gajedo, ainda é como o outro. Homens feitos que se apresentam na televisão com as mães a reboque, já é só assim aquele nível básico de auto-humilhação. Para quem não viu, o jovem e a mãezinha sentam-se num sofá e as jovens vão entrando para serem submetidas ao inquérito e à aprovação, quase como se estivessem numa entrevista de emprego. E é mesmo, aparentemente é mesmo um emprego, porque mais do que estarem interessadas nos valores das candidatas, as perguntas que as mães mais fazem é se sabem cozinhar, porque os ricos filhos são pessoas de muito alimento. Aparentemente, são também portadores de uma deficiência que os impede de cozinhar para si mesmos, coitados.
O nome escolhido para o programa foi, claramente, um tiro ao lado, porque a versão mais acertada seria "Quem quer ser a escrava do meu filho?". Aquelas mães não querem uma noiva para o filho, querem uma empregada, alguém que faça o que elas fizeram a vida toda e que, por isso mesmo, os tornou uns inúteis que nem sequer são capazes de se alimentar sozinhos. E elas olham para eles embevecidas, convencidíssimas que foram muito bem sucedidas na educação que lhes deram, quando, na verdade, andaram só a criar um bando de machistas imprestáveis que não só querem uma criada como, já agora, querem uma criada com boas mamas. Aliás, uma das mães diz isso mesmo, que o tipo de mulher que procura para o filho é uma que seja boa moça mas que também tenha uns dentes branquinhos e um rabo e umas maminhas bem feitinhas. Caralho, quando são as próprias mães a fomentar isso, estamos à espera do quê?
Às tantas já só me apetecia entrar pela televisão e aviar chapadas naquela gente toda. Nos filhos totós que estão ali a ver as mães a falar por eles ("o meu André não fuma", "o meu André não bebe", "o meu André não gosta de sair à noite", "o meu André tem 30 anos mas é burro que nem uma porta, não consegue articular duas palavras, por isso tenho de ser eu a falar por ele"), nas mães que permitem isto (deu-me a volta ao estômago uma que está lá para casar o filho de 21 anos e que ela própria já andou a rodar alguns programas para arranjar namorado) e nas mulheres. Porque elas também não são inocentes no meio disto. Elas estão ali de livre vontade (mesmo que, acredito, até sejam pagas), elas vão assim despidas vestidas, porque acreditam que quanto mais carne à mostra maior a probabilidade de continuarem no programa, elas aceitam sentar-se em frente a um homem e a uma mulher que lhes perguntam se sabe cozinhar, se está a pensar ter filhos, se sabe cuidar de uma casa, se fuma, se bebe, se sai à noite, se está a pensar fazer mais tatuagens "porque o meu Carlinhos não gosta muito de tatuagens". Elas aceitam ser reduzidas a mercadoria para entretenimento do país e, por isso, são tão culpadas como todos os outros. É que não há uma- UMA! - que diga àquelas mãezinhas "se o seu filho não sabe cozinhar é porque não o ensinou" ou "se ele é uma anémona a culpa é sua". O máximo que tivemos foi uma concorrente a perguntar "então mas o filho não fala? É sempre a mãe que responde por ele?". Habitua-te filha, isto é do que mais há no mercado.
A única coisa que me alivia um bocadinho no meio disto tudo é saber que - mesmo sendo todos uns acéfalos - não estão ali realmente para procurar o amor e, por isso, não estão verdadeiramente a perpetuar um conjunto de ideias machistas, retrógradas e que vão contra tudo aquilo que se defende. Elas não são realmente umas meninas indefesas e inocentes que acreditam que a televisão lhes vai dar um príncipe. Eles não são realmente uns anormais (bem... quer dizer) que deixam a mãe escolher-lhes a namorada. E as mães não estão realmente à espera que os seus ricos filhos lhes dêem ouvidos. Gostavam, mas sabem que não vai acontecer. Basicamente, o que esta gente toda quer é fama, protagonismo, tempo de antena, não interessa à custa de quê. Não interessa se elas passam a imagem de burras, submissas, oferecidonas, desesperadas. Não interessa se eles passam a imagem de totós, incapazes, limitados, mimados. Não interessa se as mães passam a imagem de terem parado em 1850 e de estarem a criar homens que não servem para nada. E não interessa se, isto tudo somado, faz com que quem esteja a ver possa achar que isto é normal e aceitável. Que não faz mal tratar as mulheres assim, que não faz mal escolher uma namorada pelo tamanho do soutien e pelas habilidades culinárias, que não faz mal uma mãe reconhecer que andou a criar um inapto, porque o seu lugar há-de ser substituído por outra mulher que vai continuar a permitir aquele tipo de comportamento.
Ambos os programas são uma vergonha para as mulheres. Mas, acredito, também para muitos homens que não se revêm minimamente nisto. A minha única perguntinha é: e as televisões, quem é que as responsabiliza? Ou estigmatizar mulheres em horário nobre não tem problema nenhum nesta selvajaria que se tornou a luta pelas audiências? Papamos tudo e calamos? E depois vem o quê? O "Quem quer passar as camisas do meu filho?" ? O "Quem quer satisfazer o meu filho sexualmente?" ? O "Quem quer levar este inútil para casa que tem 45 anos e ainda aqui anda a viver à nossa conta?"?. Aguardemos, em expectativa.