Desde que me lembro que os meus pais sempre deram muito uso à palavra "não". Não o faziam de forma gratuita, para serem deliberadamente mauzinhos e me lixarem a vida. Faziam-no porque nem sempre dava para dizer "sim", por muito que quisessem. Felizmente, os "nãos" traziam muitas vezes uma explicação associada. Na altura, provavelmente, não fazia muito sentido, não era por os meus pais me explicarem tudo, da forma mais pedagógica possível, que eu deixava de sentir que era uma injustiça, que o mundo estava contra mim, que eu fazia parte de uma enorme cabala, que era vítima de uns pais tiranos. Mas depois a pessoa cresce e percebe que os "nãos" que foi ouvindo só lhe fizeram bem. Ajudaram a estabelecer limites e, sobretudo, a perceber que a vidinha não é aquele mar de rosas que nos vendem nos livros infantis.
Nunca faltou nada de essencial à minha existência, mas não cresci no meio de luxo e abundância. Éramos a típica família de classe média (mais a puxar para a baixa do que para a alta). Os meus pais eram ambos funcionários públicos, com salários que não davam para grandes loucuras, por isso o orçamento familiar era gerido com a máxima cautela. Tinha de cobrir todas as despesas e ainda sobrar alguma coisa para poupança, por isso eu e o meu irmão sempre soubemos que havia coisas com as quais nem valia a pena sonhar. Que não viéssemos cá com pedidos de roupas de marca, estupidamente caras, brinquedos a custar dez contos ou outros delírios que tais. Mas podíamos ter todas as actividades extracurriculares que quiséssemos (assim de repente, andei na ginástica, no ballet, na natação, na guitarra, fazia dois campos de férias em cada verão, o meu irmão andou no ténis, no basket, numa data de desportos), a esse tipo de coisas os meus pais nunca diziam que não. Para o resto, tínhamos de ser nós a poupar. Poupei um ano para comprar o meu primeiro Swatch e mais outro para uns All Star, e a sensação de conquista que isso me deu foi absolutamente inexplicável.
Os meus pais sempre fizeram questão de nos incluir nas decisões familiares. Um dia, tinha eu 12 ou 13 anos, o meu pai sentou-nos a todos na sala e disse "temos de decidir o que vamos fazer à casa dos avós. Está velha, por isso ou desistimos daquilo e deixamo-la cair, ou então temos de reconstrui-la e apertar o cinto nos próximos anos". Era a casa onde o meu pai cresceu, no Algarve, onde sempre passámos (e passamos) férias, por isso é óbvio que escolhemos a segunda opção, mesmo que isso implicasse (mais) contenção orçamental. Também me lembro de pedir algumas coisas específicas e de o meu pai negar e me explicar porquê. Como quando, adolescente, quis inscrever-me no Holmes Place, que custava para aí 120 euros por mês. O meu pai lá teve de me explicar que estavam a fazer um esforço extra para pagar as obras na casa do Algarve, que não era uma boa altura, mas que a situação seria revista mais para a frente. Foi mesmo, e eu lá me inscrevi no ginásio ao fim de algum tempo, mas tenho a certeza que se fui foi porque os meus pais estavam numa altura em que o podiam fazer. Jamais se endividariam para nos proporcionar algo supérfluo, jamais gastariam acima das suas possibilidades, sempre foram (e são) absolutamente conscienciosos quando o tema era dinheiro.
Deve ser por isso que ainda hoje sou incapaz de comprar coisas a prestações, que só uso o cartão de crédito em situações muitíssimo pontuais, que faço questão de poupar qualquer coisa todos os meses (por mínima que seja), ou que o Mateus tem conta-poupança desde que nasceu. Verdade que hoje a vida é outra, que as coisas são muito mais acessíveis do que no tempo dos nossos pais e que também olhamos para a vida de outra maneira. Tenho a sensação que os nossos pais, às vezes, eram responsáveis demais e que isso também os impediu de aproveitar mais, de viver de forma mais despreocupada. Ainda assim, sou incapaz de viver com a corda na garganta, sou incapaz de ter crédito negativo na conta, não vivo acima das minhas possibilidades.
E esta conversa toda vem a propósito de um artigo que li ontem no Diário de Notícias. O título era "Os filhos pedem. Os pais compram. Mesmo que não tenham dinheiro", e acho que isto diz tudo. O artigo era sobre pais que são incapazes de negar os pedidos natalícios dos filhos, mesmo que custem uma pipa de massa, e mesmo que eles não tenham essa pipa de massa para dar. Preferem endividar-se do que contrariar os miúdos ou ter de explicar-lhes, simplesmente, que não podem comprar-lhes o que pediram: um computador, o último iPhone ou outra extravagância qualquer. Diz o artigo que, segundo um estudo realizado, "no último ano 88% dos pais entre os 18 e os 34 anos "sentiram a pressão social para comprar bens aos seus filhos, apesar de não terem capacidade para os pagar", tendo "um em cada três pais cedido a essa pressão".
E eu não sei o que pensar disto. Não sei mesmo. Todos nós, pais, queremos ver os filhos felizes. Queremos proporcionar-lhes o que de melhor há no mundo. Queremos que não sofram. Mas o que é que é melhor: dar-lhes tudo o que querem, poupando-os à real situação económica da família, ou contar-lhes a verdade, dar-lhes os presentes possíveis e fazê-los perceber que a vida é mesmo assim? Sinceramente, e talvez por ter crescido desta forma, a segunda opção é a que me faz mais sentido. Estamos a criar uma cambada de putos mimados, egocêntricos, que vivem numa bolha e que não fazem a mínima ideia de quanto a vida custa a ganhar. E falo por mim também, que mesmo não dando ao Mateus tudo aquilo que ele quer, dou-lhe muito mais do que aquilo que precisa, ao ponto de achar que ele não dá valor a nada.
A cada Natal faço questão de explicar aos familiares (sobretudo aos avós, esses seres altamente indisciplinados no que toca à aquisição de presentes para os netos), que só estão autorizados a dar uma coisa ao Mateus. Perguntei-lhe o que queria, fizemos a carta ao Pai Natal, e disse à minha mãe para lhe dar o brinquedo X e à minha sogra o brinquedo Y. Só isso, mais nada. Porque depois ainda faltavam os presentes dos amigos, das vizinhas, da senhora da papelaria, e blá blá blá. Tudo somado e é sempre um disparate. Além de que, à conta do blog, o Mateus tem a sorte de ir recebendo coisas o ano todo, não está à espera de uma altura específica, como o Natal ou os anos. Da minha parte, tinha decidido que também só ia dar-lhe uma coisa, mas acabei por vacilar e comprei um outro brinquedo que ele queria muito e um fato de Batman na Primark (que vai ficar já para o Carnaval). No total, gastei pouco mais de 70 euros, mas se soubesse o que sei hoje acho que nem esses 70 euros tinha gasto. Porque de cada vez que ele abria um presente e não era uma coisa da lista do Pai Natal, a reacção era "heeeeyyy! Eu não pedi isto!!!! Não era isto que eu queria!!". Oi? Como assim, pequeno monstrinho de quatro anos? Temos diva, é? Em vez de ficar contente por ter mais um presente, que alguém escolheu por achar que ele ia ficar feliz, fica de trombas porque não foi aquilo que pediu?
Está certo que tem quatro anos, que a capacidade de discernimento não é muito grande, mas aquilo irritou-me profundamente. Para o ano a política de presentes será revista e pode ter a certeza que receberá muito menos coisas. E vai ter de escolher um ou dois presentes recebidos para dar a uma instituição. Até aqui era muito pequeno, mas para o ano já vai ter capacidade para perceber. Custa-me muito, muito que os miúdos não saibam dar valor às coisas, que achem que basta pedir e que a função dos pais é garantir-lhes todos os caprichos. Eu passo a vida a dizer que não ao Mateus. E nem é por não poder dar-lhe o que me pede (ele também ainda não pede coisas estupidamente impossíveis), é mesmo porque acho importante, porque não faz sentido entupi-lo de tralhas, porque acho que só lhe faz bem esperar pelas coisas que quer verdadeiramente, para as poder saborear de outra maneira. Há para aí meio ano, talvez mais, que ele falava do Patrulheiro Aéreo da Patrulha Pata, e nós sempre a dizer-lhe que tinha de esperar pelo Natal. E não sei se foi pela espera interminável, mas a verdade é que vibrou com aquilo como não vibrou com nenhum outro presente. Os meus Natais sempre foram assim, esperar muito, muito, muito por uma coisa. Às vezes tinha o que pedia, muitas vezes não, mas tudo o que recebia era vivido com uma alegria única, precisamente porque não tinha muita coisa.
Acho que temos uma certa tendência natural para achar que quantidade é sinónimo de felicidade, que vê-los a rasgar papel atrás de papel é que é o verdadeiro espírito do natal, mas o artigo do DN refere que, ao fim do terceiro presente, a felicidade diminuiu, não aumenta, porque começa a ser demasiada informação para gerir. Eu deixei o Mateus abrir tudo mas, entretanto, já desviei estrategicamente meia dúzia de coisas para um roupeiro, para depois lhe ir dando ao longo do ano. E a prova de que recebeu mesmo coisas a mais foi que nem se lembrou de perguntar pelos presentes escondidos.
Será assim tão mau dizer-lhes que não? Explicar-lhes o porquê desse não? Queremos mesmo que eles vivam num reino encantado onde nada lhes é negado? E depois? Quando tiverem de começar a lidar com frustrações? Que tipo de adultos estamos a criar? Se lhes damos tudo, se não lhes explicamos que não podem ter tudo, se não lhes dizemos que não temos dinheiro para tudo, como é que eles vão perceber que também não podem pedir tudo o que lhes vier à cabeça? Lá está, eu sabia que os meus pais não me podiam dar determinadas coisas, por isso nem pedia e, talvez por isso, eles também não se sentiam tão pressionados. Somos nós que temos de educar os miúdos, faz parte do processo e das nossas competências. Ninguém disse que isto era fácil mas acredito, mesmo, que a longo prazo isso só os ajudará a serem pessoas melhores.