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Channel: A Pipoca Mais Doce
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A tragédia da avioneta

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Desde ontem que estou com o estômago um bocado embrulhado à conta da avioneta que aterrou na praia. Quase todas as mortes são estúpidas, mas morrer assim, desta forma, é tão improvável e inverosímil que fica difícil acreditar que isto aconteceu mesmo. Tinha vários amigos na praia de São João àquela hora, quase todos com os filhos. Li os relatos que fizeram, o pânico que sentiram, a "sorte" que tiveram. Porque podiam ter sido eles, os filhos deles, qualquer pessoa que estivesse ali. E estavam muitas. Morreu um senhor de 58 anos, morreu uma criança de 8 anos, e nunca a expressão "estar no sítio errado à hora errada fez tanto sentido". A verdade é que eles não estavam no sítio errado. Estavam só a gozar um dia de praia, a aproveitar o calor, provavelmente felizes, descontraídos, despreocupados como todos estamos num dia de praia. Longe, muito longe, de imaginarem que a sua vida acabaria ali, no areal, colhidos por uma avioneta. Sobretudo no caso da menina, não consigo imaginar o que sente uma mãe, um pai, ao ver um filho morrer-lhe assim. Não consigo imaginar a impotência, a dor, a revolta. 

Mas não consigo, também, de pensar no outro lado, nos tripulantes da avioneta. Já li tanta gente a arrasá-los, a dizer que os matava, a sugerir que só se preocuparam com a sua vida ou em salvar o aparelho, que deviam ter tentado a amaragem. Não sei isso tudo. Não tenho informação suficiente para poder desenvolver uma teoria mais específica, não percebo nada de aeronaves nem dos procedimentos a ter em caso de emergência (mas que sei que variam de modelo para modelo), e sei menos ainda da capacidade de reacção de cada um perante um cenário de morte. Porque acredito que, ao ficarem sem motor (alegadamente), essa hipótese lhes passou pela cabeça. E eu gostava de ser muito lúcida e altruísta ao ponto de dizer "se fosse eu preferia morrer do que matar pessoas", mas isso é o que eu posso pensar aqui, sentada no conforto do meu escritório, em segurança, a escrever num blog. Na hora H, tomada pelo pânico, não sei como reagiria. Não sei sequer se teria tempo para pensar. Mas desconfio, seriamente, que "não quero morrer" seria um pensamento que me ocorreria.

Quando estava a tirar a carta de condução
ensinaram-me o que fazer caso nos rebentasse um pneu em andamento. Mas quando isso me aconteceu, em plena auto-estrada, varreu-se-me tudo da memória. Só consegui agarrar-me ao volante enquanto andava aos piões, a bater nos separadores, a ver a vida a passar-me à frente dos olhos e à espera de levar com outro carro em cima. Correu tudo pelo melhor, tirando um carro amolgado. Não me magoei, ninguém se magoou por minha causa, mas foi sorte. Foi só sorte. Se, como tudo indica, a avioneta ficou sem motor, trata-se um acidente. O piloto não se lembrou de que giro, giro era aterrar no areal de uma praia cheia de gente, em pleno Agosto. Essa foi só uma decisão que teve de tomar, talvez em segundos, perante um cenário de crise. Já li que evitou ir para a areia seca, porque era onde estava mais gente, e que evitou ir para a água, porque aí seria mais difícil para os banhistas conseguirem fugir atempadamente. Não sei se aterrar à beira-mar terá sido a opção mais correcta, o menor dos males, mas, aparentemente, eu sou a única pessoa que não percebe nada deste assunto, porque o que não falta por aí, de repente, são especialistas em aeronaves.

Morreram duas pessoas em circustâncias quase surreais e isso é de lamentar. Profundamente. Mas não nos precipitemos a fazer todo o tipo de julgamento sobre matérias que desconhecemos. Se se provar que houve negligência ou que haveria forma de evitar aquele desfecho trágico, então que a justiça actue e que os culpados sejam devidamente punidos. A culpa de terem tirado vida a duas pessoas, essa já ninguém lhes tira. E a menos que sejam dois insensíveis sem coração, acredito que essa seja a sua maior pena.

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