A final de um Euro era coisa demasiado importante para ser vista num pequeno televisor, numa aldeia do sotavento algarvio. O Google, como sempre, salvou-nos a vida e indicou-nos Faro como um destino - e um ecrã - à altura do nosso sonho. Precisávamos de gente, muita gente com quem partilhar a ânsia do pré e as lágrimas do pós. Fossem elas de êxtase ou pelo triste fado que quase sempre nos acompanha nestas coisas.
Chegámos com calor a mais, sentámo-nos no chão a ver passar as horas (as horas, assim no plural) e aos poucos foram chegando os milhares que sofreriam connosco. Ao nosso lado, à nossa frente, atrás de nós, colados de sentir a pele. Chegaram a Diana e a Margarida, à vez. 120 minutos de jogo e uma orelha levantada foram suficientes para perceber que já tinham sido amigas, mas que uma qualquer desavença passional se lhes atravessou no caminho. "Eu era incapaz de te fazer o que me fizeste", ouvi a Margarida dizer a uma Diana que ainda ensaiou um "mas nessa altura nós estávamos chateadas" para acabar numa repetição de "desculpa". Um abraço ditou as pazes ainda Portugal não ganhava. Também chegou o jovem da geleira azul. Atrasado, a tentar enfiar o Rossio na rua da Betesga, uma amiga a gritar-lhe que aquilo não eram horas. Apertámo-nos ainda mais. Da geleira saltaram tremoços e cervejas que distribuiu pelas amigas. Incluindo aquela que, mesmo antes do hino, já era incapaz de se pôr de pé. Chegou o grupo de quatro franceses, provocadores, peito feito, bandeira erguida. Ali eu ainda não sabia, não tinha como saber, mas acabaria a noite a dar palmadinhas de conforto nas costas de um Griezmann que chorava baba e ranho, cara escondida na mesma bandeira de antes, agora amarfanhada entre dedos e lágrimas de desgosto.
O jogo foi o que se viu. Um Cristiano arrumado por encomenda aos 20 minutos e 11 milhões a lutar contra a vontade de baixar os braços e chorar com ele. Muitos terão dado a coisa como perdida, que ainda não seria desta. Anti-jogo, um relvado sofrível, um árbitro a roubar assim à descarada, bolas ao poste, até uma praga de traças, caralho. Estava tudo desenhado para deixarmos a taça e trazermos na mala mais uma vitória moral, daquelas que sabem a nada mas que temos de fingir que sabem a muito.
Mas esta noite foi diferente. E de reis do "foi quase" passámos a deuses do "somos tudo". Foi esse o poder do golo do Éder. Antes disso, o poder das defesas do Rui Patrício, que me fizeram querer oferecer-me para mãe dos filhos dele. Antes disso, toda as pequenas coisas que, somadas, e ao longo de um mês, nos fizeram ir pensando "tu queres ver?". Sempre com mais desdém do que crença, verdade, mas com esperança pelo meio. Não nos podem levar a mal. Já sofremos tanto que fomos obrigados a criar mecanismos de defesa. E mais vale esperar pelo pior e ser surpreendido com o melhor do que embandeirar em arco e olhar para as mãos vazias. Tipo 2004, estão a ver?
Não jogámos bonito. Não houve duelos memoráveis. Com honrosas excepções, aqui e ali, foram jogos de bocejo, enervantes de chatos, quase sempre dei por mim a pensar que me estavam a gastar o tempo. Mas o caminho faz-se caminhando e o nosso fez-se assim. Com exibições mal amanhadas, com "oh porra, outra vez prolongamento", com pouca coisa para recordar (excepto o golaço do quarentão da Musgueira). Escreveu-se que o nosso jogo era "nojento", que não merecíamos um lugar na final, como se isto fosse uma competição de ginástica rítmica e nos atribuíssem pontos pela prestação artística. Ah, que se foda o jogar bonito. Fomos eficazes e era só mesmo isso que se pedia. Eficácia e o título.
Somos um povo incrível. A curva que vai do mais profundo negativismo à maior das euforias percorre-se em segundos. Pelo meio insultamos, ameaçamos, praguejamos, damos cabo dos nervos, juramos para nunca mais, eles é que ganham o deles e nós é que nos arreliamos. Mas depois passamos uma fase. E mais uma. E o entusiasmo vem de fininho. E, quando damos por nós, já nos sentimos capazes dos maiores feitos. Merecemos isto. Merecemos esta alegria estúpida que nos faz abraçar estranhos, que anula diferenças, que nos faz sentir os maiores do mundo. É só futebol, claro que é só futebol, fôssemos nós tão unidos para outras coisas e todo um blá-blá-blá que agora não me interessa para nada, eufórica que estou com a conquista.
São cinco e tal da manhã. Às quatro dei por mim a chorar. Desceu a adrenalina, subiram as lágrimas. Não sei se vou dormir esta noite.
Porra, somos campeões da Europa.
P.S.: queridos (alguns) franceses, da próxima vez que quiserem fazer piadas com as porteiras e os trolhas portugueses, lembrem-se que também somos o povo que vos deu baile em casa. Isso sim, tem uma piada do caraças. Ah, e já nem a Fernanda Ribeiro usa bigode. Actualizem-se.