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Channel: A Pipoca Mais Doce
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Não quero ter filhos, e então?

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No que diz respeito à maternidade há alguns temas tabu sobre os quais as mulheres são praticamente convidadas a mentir, sob pena de terem de levar com a fúria de gente que, assim de repente, nada tem a ver com o assunto. Por exemplo, se a mulher optou por uma cesariana, então é capaz de ser melhor dizer que o bebé estava atravessado, que não deu a volta ou que estava a fazer piruetas e mortais encarpados à retaguarda às 40 semanas. Se a mulher decidiu não dar de mamar, então tem de dizer ao mundo que o leite era mau, que sabia a iscas de cebolada, que o bebé era mauzinho para comer ou que, misteriosamente, o leite nunca chegou a subir. Isto, óbvio, acompanhado de lágrimas de dor e pesar por não poder experienciar o mais bonito e enternecedor momento da vida e por, já se sabe, nunca ir conseguir criar laços com o puto que, antes dos 10 anos, já terá sucumbido ao mundo do crime e da toxicodependência. E depois há as outras, as que, pura e simplesmente, não querem ser mães. Não estão para isso, não se imaginam, não gostam de miúdos, ou até gostam, mas dos dos outros, não precisam de um inteirinho só para elas. Também a essas aconselham que mintam. "Ai, filha, tu não digas tal coisa, diz antes que não podes ter, que te saiu um útero ruim, também não vale a pena estares para aí a chocar as pessoas com tamanha heresia". 


Foi por isso que assisti, com alguma curiosidade, à conversa entre a Júlia Pinheiro e duas convidadas no programa Queridas Manhã, em que ambas assumiam não querer ter filhos. Os argumentos variavam. Uma, que me pareceu ter a ideia mais maturada e definitiva, dizia não se imaginar no papel de mãe, assume à partida que não tem jeito para a coisa e diz, com muita graça, que gosta de crianças como gosta de adultos: gosta de umas e de outras não. Tem 41 anos, vive com alguém que também não quer ter filhos, e o assunto está mais do que fechado. A outra, mais nova, pareceu-me mais volátil e com argumentos um bocadinho menos sólidos (mas válidos). Diz que até daria uma grande mãe, mas gosta de dormir até tarde e quanto mais a chateiam com o tema filhos mais ela gosta de espetar o dedo na ferida e dizer que não quer. Vive com o namorado que já tem um filho e que, por isso, também não puxa muito o assunto. A própria Júlia Pinheiro contribuiu com o seu exemplo: houve uma altura da vida em que tinha a certeza que não queria filhos. Mas depois casou e achou que era uma belíssima maneira de demonstrar o seu amor pelo marido. Gostou tanto que foi ao segundo e saíram gémeas.

Durante muito tempo eu também achei que a maternidade não era para mim. Não era uma porta fechada, nunca disse taxativamente que não queria filhos, porque sei que as certezas de hoje são as dúvidas de amanhã. Não vale a pena ser muito radical em nada, porque a vida encarrega-se de nos mostrar que, às vezes, a coisa não é bem assim. Mas eu não sentia esse apelo. Não tinha jeito para crianças, não gostava particularmente delas, não achava que precisasse de uma na minha vida para me sentir mais realizada ou preenchida. Falei do assunto algumas vezes aqui no blog e não faltava gente a acusar-me de egoísmo. Nunca percebi muito bem. Uma mulher que não quer ter filhos é egoísta em relação a quê? Em relação a quem? Em relação a uma criança que não existe? Em relação à sociedade, porque é dever da mulher contribuir para o aumento da espécie? Em relação às mulheres que não podem ter, como se houvesse uma qualquer lei que dita que por cada mulher que não pode ter filhos há outra que tem de ter quatro? É egoísta por assumir que não tem disponibilidade afectiva para cuidar de uma criança? Então mas não é mais egoísta trazer uma criança ao mundo sabendo, à partida, que essa disponibilidade não existe? Ou é egoísta porque prefere não ter alguém dependente dela e manter a sua vidinha tal como está? Não me lixem, um filho é muito bom, é o melhor do mundo, mas um filho não é só um filho, traz uma data de coisas com ele. É preciso tempo, é preciso dinheiro, é preciso toda uma estrutura (emocional e não só) para aguentar as mudanças que um filho implica. E há quem, simplesmente, não esteja para isso. Há quem adore a sua vida tal como está e não a queira mudar. É verdade que não há uma alma que diga que a vida muda para pior quando se tem um filho, mas há quem não esteja para arriscar o salto para o desconhecido. E essa opção parece-me perfeitamente legítima. Tão legítima como decidir ter um rancho de filhos. E sim, há momentos em que tenho saudades da vida sem filhos, quem disser o contrário mente com todos os dentinhos que tem na boca (pivôs incluídos).

Depois há a questão do amor. Há sempre quem salte de algum canto, pronto a gritar "mas assim nunca vais saber o que é este amor tão único e tão especial". Verdade. Quem não tem filhos nunca saberá o que isso é, mas se também não sabe não lhe sente a falta. Nunca sentirá. E não vale a pena tentar explicar. Antes de ser mãe, lembro-me de perguntar a várias pessoas que me dissessem que tipo de amor era aquele. Era parecido com o que sentiam pelos pais? Pelo namorado? Pelos irmãos? Como é que era? Por mais que se esforçassem, nunca ninguém conseguia explicar. Só me diziam "é diferente... não sei, é diferente". Efectivamente, é preciso ser mãe/pai para se saber que amor é esse, tão fantástico, tão arrebatador, tão poderoso. Quando ouço pessoas a dizerem que não querem ter filhos, não deixo de sentir uma pontinha de pena. Mas não é comiseração nem nada que se pareça, é mesmo por achar que este amor é tão TUDO que ninguém deveria deixar este mundo sem o sentir. Mas é uma coisa que guardo para mim. Daí a pôr-me a evangelizar mulheres para que engravidem é que já vai uma grande volta. 

Nem toda a gente nasceu para ser mãe e o melhor é aceitarmos isto com naturalidade e sem dedinhos acusatórios. Porque deve ser muito cansativo ter de estar sempre a explicar, vezes sem conta, porque é que não se quer procriar, como se se devesse alguma coisa a alguém. Porque deve ser horrível ter de estar sempre a levar com olhares de estranheza, de pena, de ira, de sei lá eu o quê. Como é que uma decisão tão íntima e tão pessoal pode incomodar tanto os outros ao ponto de acharem que devem interferir ou até tentar fazer a pessoa mudar de ideias? Quem é que lhes encomendou o sermão? Em que momento é que vos entregaram o título de entidade divina? Menos, muito menos. 

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